sexta-feira, dezembro 22, 2006

Conto de Natal

Subiu lentamente a rua batendo às portas na mira que lhe dessem algo com que, naquela noite, lembrasse que era Natal e que o Menino Jesus, ia para dois mil anos, nascera numa gruta dos arredores de Belém. Os anos pesavam-lhe sobre os ombros, as pupilas teimavam em querer enxergar, mas já só via vultos à sua frente, seguia orientado pelo tino e pela aprendizagem feita ao longo dos muitos Invernos que embranqueceram os seus cabelos. Os cães ladravam à sua passagem, pois não gostavam do seu andar trôpego, nem do bater do cajado tacteando o caminho.

- Ó Micas, dá-me algo com que me lembre que hoje é dia de consoada. – Disse para uma jovem que assomou a uma janela.

- Aguarde um pouco que já aí vou.

Encostou-se ao umbral da porta e, enquanto esperava – pobre de quem chega a velho e tem de enfrentar a desgraça da solidão!... – foi lembrando a sua vida de homem gasto pelas esforçadas canseiras de luta pelo pão. Não teve filhos e a companheira, que, durante mais de sessenta anos, partilhara com ele o amor e a estadia na Terra, finara-se na última Primavera, tal como ele, carregada de anos. Este ia ser o pior Natal de sempre. Iria estar sozinho no seu tugúrio, de lareira apagada, pois lhe faltavam forças e vista para buscar uns pauzitos que lhe aquecessem os ossos doridos e gastos. Seria um natal triste, muito triste, porque sem ninguém com quem partilhar os sentimentos de saudade que o envolviam e faziam sangrar o seu coração e a sua ensombrada alma de viúvo solitário e, pode dizer-se, cego.

- Ti’ Domingos, entre. Como sabe – disse a jovem ajudando o velho a galgar a soleira da porta – também estou só desde que perdi a minha mãe, há quatro meses…

- Pois é, filha. – Respondeu o ancião entrando, fortemente, amparado àquele braço cheio de vida e força que o levou a sentar no preguiceiro, junto à lareira crepitante a irradiar luz e calor, dando aconchego a toda a casa.

Consoaram remoendo recordações e saudades de dias alegres: ele com a esposa; ela com os pais. E ambos foram, extremamente, felizes.

- Ti’ Domingos venha comigo, venha deitar-se. Já preparei a cama que era de meus pais, porque, a esta hora, já não o deixo ir a lado nenhum.

A moça levou-o, carinhosamente, para um quartinho contíguo ao seu e ajudou-o a despir e a deitar-se e aconchegando-lhe a roupa, numa ternura de neta querida, que não era, foi também descansar. Após breves instantes, o velho sossegou, muito aconchegado nos lençóis de linho e nos cobertores de lã quentinha e fofa. Então, de repente, o pequeno aposento encheu-se de uma luz intensa, mas doce, muito doce e bela e o vulto da sua Angelina, toda vestida de branco, surgiu a sorrir-lhe meigamente e a dizer, muito de mansinho, tomando-lhe a mão, como quando casaram na Ermida da Senhora da Serra:

- Domingos, anda, “vamos a Belém, ver o Menino que Nossa Senhora tem!

E entrou, tranquilamente, na Eternidade pela mão da esposa que o levou a adorar o Menino Jesus, como fizeram os pastores há dois mil anos.

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