Doença de família – a qual atingiu também o irmão e a irmã – pelo seu espírito irreverente e mais livre de preconceitos, fizera dele, dos anos quarenta a cinquenta e tal do século XX, figura típica na cidade de Viseu.
Latoeiro de profissão, Pedrinho cegara ainda não atingira o meio século de vida. Mas, porque conhecia a sua terra como ninguém, não se confinou a um viver sedentário de esmoler à porta de casa e era vê-lo – todos os dias, fizesse frio ou calor – de grossa bengala, pintada com riscas brancas e vermelhas, numa mão e caixa da rabeca a tiracolo, a percorrer a cidade em direcção às “quatro esquinas” (cimo da rua Direita). Aí, poisava o instrumento sobre o ombro esquerdo, tirava algumas arcadas que alegravam e encantavam os passantes compadecidos que lhe lançavam na caixa do instrumento, estrategicamente, colocada no chão, umas moedas que lhe permitiam ir molhar a goela à “Estrela Verde” ou ao “Senta Aí”, com uma aromática taça de tinto do Dão.
Certa vez, manhã gélida de Janeiro,
- Oh! Desculpe, minha senhora!
De cima da carroça das vacas, um dos homens esclareceu de forma bem audível:
- Não é Senhora nenhuma, Pedrinho. É um carro de vacas!
Desviando caminho, Pedrinho lá seguiu para as “quatro esquinas” a dar seu habitual concerto.
Cerca de uma hora após o incidente, retornou pelo mesmo trilho. Ao chegar, ao mesmo sítio onde havia encontrado a carroça que transportava as pipas de vinho, topa com a fidalga de Figueiró, a D. Mercês Pessanha, na época a pessoa mais rica e, por isso mesmo, mais conhecida e respeitada da região, muitíssimo bem agasalhada em seu magnífico casaco de peles. Ao sentir, na ponta dos dedos, aquele toque, porque o lugar era o mesmo, saiu-se de pronto, em voz bem alta, com o seguinte comentário:
- Cá está, outra vez, a puta da vaca!
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